O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do 2.º Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Este Workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, na página do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.
Por Pedro Henrique
O cinema não tem de ter funções ou agendas sociais, não tem como missão educar a sociedade nem chamar a atenção para dramas da sociedade. Contudo, esta arte é composta por pessoas que vivem numa realidade e numa sociedade em particular. Assim, os filmes abordam questões que rodeiam essas pessoas e preenchem a tela com a luz que emana do que se vive. Os dois filmes que encerraram a sessão número cinco da competição internacional do Curtas, Los Desheredados de Laura Ferrés e Manodopera de Loukianos Moshonas, focaram-se em quotidianos de pessoas que ficaram sem o emprego, no primeiro caso, e de um trabalhador que reconstrói uma casa, enquanto um coro grego de jovens discute a realidade europeia no telhado.
O filme espanhol resiste contra o status quo através do Senhor Ferrés, um homem de 53 anos que se vê na iminência de encerrar o seu negócio devido à conjuntura (palavra-buraco negro, de onde nada se escapa) económica e social e apercebe-se que está naquela idade fatídica em que um novo emprego se afigura difícil. Poderia ser um Daniel Blake na Catalunha, uma vez que a sua personalidade não se compadece com o oxímoro económico que atravessamos. Pelo contrário, Ferrés resiste sendo cada vez mais honesto com ele próprio, tornando-se comicamente irascível com o que o rodeia, praguejando, insultando, abandonando os seus clientes a meio da viagem ou divertidamente atirando uma bola de neve à sua idosa mãe.
O título do filme helénico dá o mote para o que literalmente se vê: uma mão de obra, absolutamente indispensável, mas aparentemente menos valorizada, à qual a expressão, pela qual é denominada é enganadora, uma vez que também se constrói como uma mente de obra. As suas personagens destroem e reconstroem paredes, mas também pensam a Europa do alto de um telhado, para melhor serem ouvidos, por um poder longínquo. Conversa-se a céu aberto, na esperança que o Olimpo os ouça e resolva os seus problemas terrenos, não com receitas multinacionais, mas antes com uma fisioterapia social idiossincrática de cada nação.
Filmam-se aqui dois retratos de dignidade. Uma dignidade que em Manodopera se revela no cuidado com que Andi, um trabalhador, com um carinho manual usa uma máquina de polir para retirar resquícios de cimento de tijolos que serão reaproveitados para uma nova construção, uma metáfora daquilo que necessita ser realizado a nível político. Em Los Deshederados, a dignidade apresenta-se à mesa de jantar através de uma conversa entre mãe e filho, entre o bom senso maternal e uma irreverência juvenil. Os planos nos dois filmes são um convite para nos sentarmos com as personagens e, antes de mais, ouvirmos e vermos. Um assento para lhes dar o mínimo possível, a nossa atenção integral.
O palmarés da 25ª edição do Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema foi anunciado esta tarde na cerimónia de encerramento do festival. O grande prémio do certame foi entregue a um filme português: “Farpões Baldios” de Marta Mateus.
O júri – composto por Pela Del Alámo (CurtoCircuito – Festival Internacional de Cine), António Preto (programador de cinema), Nicole Brenez (docente e investigadora de Estudos de Cinema na Universidade de Paris 3 – Sorbonne Nouvelle), Dennis Lim (Film Society of Lincoln Center) e Georges Schoucair (produtor de cinema) – considerou o filme “uma obra tão luminosa quanto exigente” que “revivifica uma linhagem de obras onde a infância desbloqueia os sofrimentos, os erros e a virtualidades do passado, tradição que devemos, entre outros, a Manoel de Oliveira, a António Reis e Margarida Cordeiro, a Teresa Villaverde”. A curta-metragem venceu o Grande Prémio DCN Beers da Competição Internacional (à qual concorrem também os filmes da Competição Nacional).
Na mesma competição, “My Burden” de Niki Lindroth von Bahr foi o vencedor do prémio para Melhor Animação; “O Peixe” do brasileiro Jonathas de Andrade foi considerado o Melhor Documentário e “Les Îles” de Yann Gonzalez foi premiado com o troféu para Melhor Ficção. O Prémio do Público Niepoort foi atribuído pelos espetadores a “Retouch” do iraniano Kaveh Mazaheri.
A espanhola Laura Ferrés venceu o Prémio de Melhor Curta-Metragem Europeia com “Los Desheredados”. O filme ficou, assim, nomeado para os European Film Awards da European Film Academy.
Na Competição Nacional, que contou com 16 filmes portugueses a concurso, o vencedor do Prémio BPI e Pixel Bunker foi “Où En Êtes-Vous, João Pedro Rodrigues?”, de João Pedro Rodrigues, um filme que, segundo o júri, é “capaz de fazer explodir tudo, e o mais depressa possível”, debatendo-se com o auto-retrato da humanidade por ela própria, empreendimento geral que é o cinema, ao mesmo tempo que desloca os princípios da autobiografia”.
Gabriel Abrantes venceu, pelo segundo ano consecutivo, o Prémio Blit para Melhor Realizador Português, desta vez com “Os Humores Artificiais”. Nas palavras do júri, o prémio foi atribuído ao realizador “pela sua fantasia romântico-tecnológica, por ter inventado o primeiro robot multigénero, por ironizar energicamente um mundo onde não queremos viver”.
O Prémio do Público SPA, destinado ao melhor filme português com melhor média de votação atribuída pelo público, foi atribuído à animação “Surpresa” de Paulo Patrício.
Também pelo segundo ano consecutivo, a realizadora Rosa Barba venceu a Competição Experimental, com o seu novo filme “From Source to Poem”. O Prémio Grupo Jorge Oculista foi atribuído “pela inteligência da sua proposta visual e sonora, a criação de uma constelação não-linear de imagens e sons do maior arquivo multimédia do mundo, onde a presença de texto e tipografia aparecem em constante transformação, refletindo os interesses da artista relativos à permanente perda de informação essencial.” Ainda na Competição Experimental, foi atribuída uma Menção Honrosa a Lois Patiño pelo filme "FAJR".
No Curtinhas, secção para os mais novos onde o júri é composto por crianças, o Prémio Curtinhas MAR Shopping foi entregue a “Revolting Rhymes, Part One” de Jakob Schuh e Jan Lachauer. Nesta competição foram ainda distinguidos com menções honrosas os filmes “Jubilee” de Coralie Soudet, Charlotte Piogé, Marion Duvert, Marion El Kadiri e Agathe Marmion; “Lost In Spring” de Fred Leao Prado Wall e “Mindenki”, de Kristof Deak.
João Nicolau venceu a Competição de Vídeos Musicais com “Old Habits” de Minta & The Brook Trout.
Na Competição Take One!, dedicada a filmes de escola, foram entregues à curta-metragem “De Gente Se Fez História”, de Inês Pinto Vila Cova, o Prémio IPDJ, o Prémio Smiling, o Prémio Agência da Curta Metragem e o Prémio Restart. Ricardo Pinto de Magalhães venceu o Prémio Kino Sound Studio para Melhor Realizador pelo filme de escola “Delphine Aprisionada”.
Os filmes premiados repetem, este domingo, no Teatro Municipal de Vila do Conde, em sessões às 18:30, 21:15 e 22:30. Os premiados serão também apresentados, em diferentes cidades do país, através das extensões do festival que arrancam já amanhã.
O 25º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema tem o apoio da Câmara Municipal de Vila do Conde, do Ministério da Cultura, do Instituto do Cinema e Audiovisual, do programa MEDIA/Europa Criativa e de vários parceiros imprescindíveis à realização do festival, incluindo a Acción Cultural Española (AC/E) que apoia a forte presença de Espanha no Curtas Vila do Conde.
O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do 2.º Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Este Workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, na página do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.
Por Teresa Vieira
Um homem sem memória é um homem sem identidade. Um homem sem memória não é um Homem: não passa de um animal perdido na tenebrosa e assombrosa escuridão do esquecimento e da indefinição da identidade. Altas Cidades de Ossadas (2017), de João Salaviza, propõe uma exploração visualmente sombria de um homem que, sobre a luz das tentativas de reformatação social e cultural da sua comunidade, se mantém ligado à raiz da sua identidade cultural, ao território onde sente que pertence.
Karlon, personagem principal desta ficção, mas também personagem principal do mundo do rap crioulo em Portugal, está despido de elementos superficiais, sem roupa no tronco, mas, acima de tudo, sem as camadas mais superficiais da memória e da identidade, num estado quase primitivo de um homem que existe (resistindo) através da ligação às profundezas culturais que o definem. A sua memória mais recente está apagada, o contacto com a comunidade a que pertence é esporádica, mas a coletividade que retrata e representa, em si, é de uma força abismal. Um homem aparentemente sem memória individual, que poderia ser reduzido a um animal perdido na escuridão, mas que resplandece, numa absoluta plenitude, a identidade e memória coletiva da cultura em que se integra. A sua força de expressão assenta nas palavras, nos versos, na garra e persistência de ligação ao território que o viu nascer e crescer enquanto pessoa.
A escuridão do meio que rodeia Karlon marca, em termos visuais, este registo de Salaviza, num jogo constante de sombras que nos remete para um estado do inconsciente, de um lugar remoto da memória, que é apagado - ou, talvez, necessariamente desligado - da realidade diária de qualquer indivíduo, de qualquer comunidade, de qualquer cultura, ainda que sempre presente. Somos transportados para uma espécie de savana de elementos naturais, onde o contacto com a realidade mais superficial nos surge somente através de pequenos relances de luz, que incidem sobre amigos e familiares de Karlon, que nos surgem enquanto aparições que instigam a interrupção do estado de alienação - tão terrena, tão natural - da personagem. Somos transportados para o estado mais interior deste indivíduo, que nos transmite a força de uma identidade que não pode - nem deve - ser apagada.
Esta é um registo visual de resistência, uma reflexão performática sobre a tentativa constante de reintegração - forçada -, de realojamento apressado e despersonalizado de comunidades que não encaixam no suposto padrão civilizacional: a colocação de uma cultura num local sem identidade, ao qual não pertencem nem querem pertencer. Uma resistência que se assemelha a uma loucura quase obsessiva, sobre a perspetiva de uma melhoria da condição de vida. Mas não será esta relocalização, esta despersonalização territorial, esta reformatação, esta perda da raiz, da identidade, da memória, a derradeira (e aterradora) loucura?
A restrospetiva In Focus do cineasta francês F. J. Ossang continua hoje, às 23h30, com o filme "Le Tresor Des Iles Chiennes". O mundo depois da era atómica. Um engenheiro desaparece, juntamente com o seu consórcio (Kryo'Corp) e sua descoberta: uma nova fonte de energia alimentada pela fusão de duas substâncias primárias. Ulysses, herdeiro de Kryo'Corp, organiza uma expedição para o único lugar em que essas substâncias existem.
A Competição Nacional, um dos momentos mais aguardados do Curtas Vila do Conde, continua hoje às 21h15, quando serão exibidos mais três filmes a concurso: "Das Gavetas Nascem Sons", de Vítor Hugo, "Oú En Êtes-Vous, João Pedro Rodrigues", de João Pedro Rodrigues e "Coelho Mau", de Carlos Conceição. Ainda às 20h repetimos a sessão de ontem. Destaque ainda para as duas sessões da Competição Internacional, às 17h e às 22h30, e para a Competição Experimental às 18h30.