Neste ano tão invulgar, esta nunca poderia ser uma edição normal do Curtas. Pensar, programar e organizar um evento como um festival de cinema desta dimensão, um espaço de encontros, que celebra uma partilha comunitária de experiências e descobertas do cinema em sala e na galeria, tornou-se um enorme e exigente desafio, que obrigou a uma adaptação e a encontrar novas e inovadoras formas para o festival no seu aguardado encontro com o público. Uma das prioridades da edição de 2020 foi assegurar o cumprimento de todas as condições de segurança, de acordo com as normas definidas pela DGS, de forma a possibilitar um encontro seguro na sala de cinema.
Pela primeira vez, o Curtas apresenta também parte da sua programação online, através do formato VoD (Video on Demand), permitindo que o encontro entre o público e os cineastas possa também acontecer em ambiente virtual e o acesso a uma audiência mais alargada, chegando a várias zonas do território, importante especialmente em contextos de isolamento e quando a cultura se afirma como um bem essencial.
Além disso, o Curtas também delineou um plano para levar uma parte importante da programação, a Competição Nacional, a outros locais do país, com sessões em Porto, Faro e Lisboa, que contarão, tal como em Vila do Conde, com a presença dos realizadores, mantendo assim o compromisso de divulgar o cinema português mesmo num contexto atribulado. Em estreia nacional, o Curtas apresentará as mais recentes obras de João Rosas (Melhor Filme da Competição Nacional em 2015), Filipa César (Grande Prémio Cidade Vila do Conde em 2015), Carlos Conceição (Melhor Média Metragem Portuguesa de Ficção em 2014), Pedro Peralta (Menção Honrosa Take One! em 2012), Sandro Aguilar (Melhor Curta Metragem Europeia em 2005 e 2001), entre outros.
O Mundo do Cinema em Vila do Conde
Autores importantes como o ucraniano Sergei Loznitsa, o iraniano Jafar Panahi, o canadiano Guy Maddin, o mexicano Nicolás Pereda e a grega Konstantina Kotzamani, entre muitos outros, são alguns dos cineastas mais conhecidos que apresentarão obras inéditas na Competição Internacional, onde também será possível assistir a curtas de talentos emergentes como a espanhola Lucía Aleñar Iglesias, a grega Jacqueline Lentzou ou a francesa Elsa Rysto. A Competição Experimental continua a apresentar filmes na vanguarda, e a incluir alguns nomes de enorme reconhecimento internacional, como a ítalo-alemã Rosa Barba, o norte-americano Ben Russell, o britânico Ben Rivers, a portuguesa Salomé Lamas, a colombiana Laura Huertas Millán ou a equatoriana Alexandra Cuesta.
O Stereo, o popular programa que põe em diálogo cinema e música, começa por apresentar uma sessão com alguns documentários sobre histórias relacionadas com a música portuguesa, desde os pioneiros do Hip-Hop, um misterioso cantor de Matosinhos que se tornou num dos grandes mitos da música popular portuguesa de uma forma muito insólita, e a história de um polivalente ator, driver, professor, pintor e bailarino nos concertos dos Sensible Soccers. Em destaque estará o cine- -concerto “Guanche”, que junta em palco o lendário Paulo Furtado (The Legendary Tigerman), a atriz Íris Cayatte e o realizador Pedro Maia, e a sempre muito aguardada sessão da Competição de Vídeos Musicais, com os mais estimulantes vídeos musicais que foram produzidos em Portugal no último ano e que contará com a presença dos realizadores.
O programa Da Curta à Longa, espaço em que o festival acompanha alguns dos realizadores que já passaram por Vila do Conde e que apresentam os seus novos projetos, selecionou um conjunto de obras, em antestreia nacional, de autores bem conhecidos do Curtas. João Paulo Miranda Maria, de quem o Curtas tem exibido as suas curtas-metragens, que têm passado em festivais importantes como Cannes e Veneza, com filmes como “A Moça que Dançou com o Diabo” ou “Meninas Formicida”, e uma das maiores promessas do atual cinema brasileiro, estará presente para apresentar a sua primeira longa-metragem, “Casa de Antiguidades”, um dos destaques da seleção de Cannes. A norte-americana Kelly Reichardt, um dos nomes mais importantes do cinema mundial contemporâneo, e que foi a cineasta In Focus na edição de 2014, estreará em Portugal o seu magnífico novo filme, “First Cow”, que teve uma aclamada estreia mundial na Berlinale. Rodrigo Areias, autor amplamente acompanhado pelo Curtas em edições anteriores, vencedor da Competição Nacional em 2008, com “Corrente”, irá apresentar o seu novo filme, “Vencidos da Vida”, depois de ter apresentado, num evento pré-festival, o seu filme “Surdina”, em cine-concerto com Tó Trips. "Surdina" conta ainda com o argumento de Valter Hugo Mãe, escritor com uma importante ligação ao Curtas, e que nesta edição será uma figura central, presente no documentário “O Sentido da Vida”, de Miguel Gonçalves Mendes, e protagonista no filme da sessão de encerramento, “Herdeiros de Saramago: Valter Hugo Mãe”, episódio de uma série criada por Carlos Vaz Marques e realizada por Graça Castanheira.
As curtas-metragens parecem estar outra vez na moda, com diversos autores consagrados a voltarem recentemente ao formato com que iniciaram as carreiras de realizadores: será possível assistir numa sessão especial às novas curtas do português João Pedro Rodrigues, do britânico Jonathan Glazer, do grego Yorgos Lanthimos e do espanhol José Luis Guerin.
Ainda fora das secções competitivas, o Curtas apresenta vários panoramas que estão atentos ao que de mais interessante se tem feito em alguns países europeus, nomeadamente na Polónia e Roménia. Do mesmo modo, o Panorama Nacional apresenta uma seleção de curtas-metragens de produção recente a nível português, sendo possível este ano assistir a filmes de David Pinheiro Vicente (vencedor em 2018 do prémio para Melhor Curta Metragem Portuguesa), Clara Jost, João Fazenda e a dupla Mariana Caló e Francisco Queimadela.
Olhar para o Passado e para o Futuro
O Cinema Revisitado, secção criada na edição anterior, volta a apresentar um conjunto de propostas desafiadoras e imperdíveis, que revisitam e reinventam a história do cinema, dando destaque a obras esquecidas ou menos conhecidas. Este ano o Curtas apresenta uma proposta inédita e exclusiva, escolhida pela curadora e crítica francesa Nicole Brenez: uma oportunidade imperdível de descobrir, e ver em sala, as curtas mais obscuras de um dos maiores mestres da história do cinema, Jean-Luc Godard. O programa incide sobre os trabalhos publicitários e de promoção dos seus próprios filmes, como trailers diversos, que o realizador franco-suíço criou entre 1955 a 2019, num resgate fundamental de um vasto e valioso conjunto de trabalhos menos divulgados até aqui.
Outro destaque desta secção é a carta branca escolhida pelo cineasta francês Frank Beauvais, com propostas imperdíveis, que acompanham a exibição do seu filme de 2019, “Ne croyez surtout pas que je hurle”, em que o realizador criou uma espécie de diário pessoal através dos filmes que viu em isolamento, numa das obras mais importantes e prementes do último ano. O centenário da curta “One Week”, protagonizada e realizada pelo genial Buster Keaton, será celebrado com uma contextualização proposta pelo crítico de cinema João Lopes. A intemporalidade de “O Recado”, longa- -metragem de estreia de José Fonseca e Costa, com a presença asfixiante da icónica Maria Cabral e o prenúncio do 25 de Abril de 1974, será também uma sessão imperdível. Haverá ainda lugar no Curtas para homenagear Vicente Pinto Abreu, um querido colaborador de longa data que faleceu recentemente, com uma sessão especial onde serão exibidos “La Jetée”, o icónico foto-romance de Chris Marker, e “Boro in the Box”, de Bertrand Mandico, com o seu excêntrico olhar para as margens do cinema, onde o procurava reinventar.
Em 2020, o Curtas apresenta uma nova secção não competitiva: intitula-se New Voices e pretende ser um espaço para primeiro se reparar em talentos emergentes cujas obras de curtas e primeiras longas-metragens apresentam já um corpo de trabalho consistente e diferenciador. Este novo espaço reforça o compromisso do Curtas com a descoberta de novas tendências e o apoio à cinematografia que marcará o futuro do cinema. Para esta primeira edição, a escolha recai sobre três realizadoras, cujo trabalho, em filme, performance e instalação tem espelhado, de forma particularmente idiossincrática, questões de identidade, sentimento de pertença e conexão a territórios: a espanhola Elena López Riera, a panamiana Ana Elena Tejera e a luso-descendente Ana Maria Gomes são as novas vozes para conhecer no Curtas.
Atento ao futuro, o Curtas apresenta também um conjunto de sessões destinadas aos públicos mais jovens: a tão animada secção Curtinhas, com sessões para toda a família e onde o júri é composto por crianças até aos 9 anos de idade; a irreverente secção My Generation, em que a seleção é feita por jovens das escolas secundárias de Vila do Conde e Póvoa de Varzim; e a competição Take One!, que se afirma cada vez mais como um importante barómetro da produção de cinema feita nas escolas de cinema em Portugal e um pouco por todo o mundo, e que já revelou nomes hoje internacionalmente premiados como João Salaviza e Leonor Teles.
Isaki Lacuesta, um cientista-feiticeiro
O artista espanhol Isaki Lacuesta é um cineasta do século XXI, um autor cuja obra com imagens em movimento, quer a produzida para a sala de cinema como a destinada a espaços expositivos, explora com vitalidade as novas possibilidades expressivas, procurando ultrapassar os limites instituídos. Ao mesmo tempo, é um cineasta dos anos 20 do século XX, pelo fascínio que mantém pelo movimento expressionista alemão, sobretudo a obsessão pelo cientista-feiticeiro, uma figura que se constrói de forma ambígua e contraditória, e pelo misterioso jogo entre a luz e a sombra, com toda a fantasmagoria a ele inerente.
O processo criativo é muito valorizado por Lacuesta, entendido sobretudo como algo infinitivo, que perpetua a criação artística ao longo da vida e do tempo, onde as suas obras estão sempre a atomizar-se e a reunificar-se, a desdobrar- -se e a fragmentar-se. A sua obra está em permanente transformação, apostando nas variáveis para se recriar e reinventar, sobretudo em diálogo com o público e com os espaços onde é apresentada.
A obra de Lacuesta procura explorar novos espaços de contato com o espectador, desafiando-o, de forma subversiva, também a abandonar a sua condição passiva de mero observador. O percurso expositivo estabelece relações diferenciadas entre as obras, de períodos distintos, com início nas primeiras curtas-metragens que aqui encontram uma outra dimensão, de convívio mais direto e intimista com o público, passando por um projeto mais direcionado à projeção multicanal, portanto, específico para o espaço de galeria, culminando nas obras mais recentes, nas quais a interseção com a música é dominante, enquanto peças realizadas para canções. Isaki Lacuesta trabalha muitas vezes em parceria com Isa Campo e em conjunto com diversos artistas de áreas distintas, que emprestam às suas obras um caráter propositadamente ambíguo, assumindo a metamorfose do processo criativo como um processo em si, chamando à equipa de rodagem, por exemplo, uma realizadora de cinema experimental como Adriana Vila Guevara, mas também a cantora Silvia Pérez Cruz, a bailarina e coreógrafa Rocío Molina ou a atriz Alba Flores. Realce, também por isso, para as peças inéditas, recém-concluídas e cuja rodagem foi realizada durante a preparação para montagem da exposição, culminando o seu percurso.
Isaki Lacuesta estará em Vila do Conde durante o Curtas, oferecendo uma visita guiada à exposição e participando num debate sobre a sua obra, numa oportunidade rara para a conhecer em discurso direto.