Sou o irmão do meio numa família do Minho e já perdi dois cães. Chamavam-se Nero, foram assassinados. O primeiro morreu esmagado no meio do corpo pelas rodas de trás de um camião. Foi a minha primeira experiência de hit and run e não o sabia e para mim esse condutor ficou a ter para sempre a cara de Carey Loftin, o duplo invisível do Duel. O meu irmão insistiu em carregar o cão sozinho e quando chegamos ele deixou-me depositar com ele com muito cuidado o cão morto à porta de casa e ficamos os dois parados a chorar. A roupa do meu irmão ainda escorria da explosão de sangue do cão. O outro Nero comeu carne envenenada pelo vizinho na véspera de João Paulo II vir a Braga e nem ele nem nós sabíamos ainda o nome de Ali Agca, que aprenderíamos no dia a seguir. Quis vir morrer a casa e arrastou-se a espumar convulsionado e confuso até nós a tremer, o meu pai voou e voltou com uma garrafa na mão despejada na boca aberta inerte do cão que já tinha a língua morta a pender. Depois depositou lentamente a cabeça cega do cão no chão e gritou sem eu conseguir ouvir que matava o vizinho, mas caiu, como se tivesse pernas de Pamplinas, a patinar na poça do azeite que escorria da cara morta do cão. Muitos anos depois acordei a sorrir, tinha seis anos, era vizinho do pequeno Victor Frankenstein e de noite esperava com ele no telhado pelos raios fantásticos da reanimação. A Sofia Coppola também entrava. (José Miguel Gaspar)