“Nasci em África, mas parti para a Europa na minha adolescência. A minha mãe ficou para trás.” É com esta frase e ao som de “Hope To Meet You” que se inicia “Serpentário”, a mais recente obra de Carlos Conceição, estreada mundialmente na última edição da Berlinale. O viajante, sem nome na narrativa, chega vindo do céu, como um anjo que regressa à terra em busca de um tempo passado ou de uma possível redenção. A história avança através de uma narração alternada, da voz do protagonista sem nome e de uma voz feminina, de quem desconhecemos o rosto ou a condição. Encorpando uma figura sebastiânica, o viajante recorda as caravelas, os padrões assinalados, os primeiros confrontos com as populações autóctones. Enquanto prossegue a viagem, explora a cartografia do território através de um misto de memórias familiares (a chegada da sua família a Angola), memórias cinéfilas (o western e a conquista de terras “incivilizadas”) e memórias históricas (as lutas de libertação na década de 1960 e a consequente independência). Os seus sonhos atormentam-no, vendo-se perseguido pelos fantasmas do passado. Cruza-se com um anónimo que lhe dá boleia, de quem não vemos o rosto mas de quem reconhecemos a voz do próprio realizador, que o alerta para algumas fronteiras que não podem ser cruzadas. O viajante está à procura da sua mãe, que deixara para trás quando viajou para a Europa, mas não encontra nada, só ruínas e vestígios de um território destruído pelos conflitos do passado. Finalmente, encontra um papagaio azul e amarelo que cantava com a voz da mãe dele, mas o encontro não trará as respostas que o viajante tanto esperava. Há uma dimensão inegavelmente autobiográfica que já havíamos visto em “Acorda, Leviatã”, assumida de forma simbólica na relação de Conceição com Angola, a terra onde nasceu e viveu até aos 12 anos de idade. “Serpentário” explora esse regresso ao sul da terra do Sol, onde Conceição procura trabalhar a pós-memória, pessoal e familiar, através do cinema: com uma carga alegórica, o filme propõem uma viagem de um jovem (interpretado por João Arrais) pelo território angolano em busca da mãe desaparecida, oscilando entre o passado e o futuro. O título do filme alude ao zodíaco, mais concretamente ao seu décimo terceiro e mais polémico signo (Ophiuchus), que a mitologia grega associa à ressurreição, e que Conceição parece associar a um recomeço da sua relação afetiva com a terra de nascimento, da qual se afastou durante a adolescência. (PC)