Para uma estética da sede Bacurau é uma cidade no interior de Pernambuco, num futuro distópico. Dias após a morte de Carmelita, uma matriarca de 94 anos, os habitantes descobrem que a sua cidade desapareceu de todos os mapas. Carmelita é então a ideia de um Brasil que morreu, mas que deixou um legado de afetos e de alegria, tendo gerado muitos filhos que se foram espalhando pelo mundo. A cena do funeral da matriarca é uma espécie de grande celebração catártica coletiva. “Bacurau” será também, parafraseando a canção de abertura do próprio filme, uma canção brasileira para ouvir depois do Carnaval, no fim da festa, ou então um objeto voador não identificado, que parece ter perdido a sua identidade. Ambientado no mítico sertão brasileiro, imortalizado na literatura por João Guimarães Rosa “Grande Sertão: Veredas”, 1956 ou Euclides da Cunha “Os Sertões”, 1902 e no cinema por Ruy Guerra “Os Fuzis”, 1964 e Glauber Rocha “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, 1964; e “António das Mortes”, 1969, “Bacurau” marca um regresso a esse território historicamente esquecido, marginalizado e explorado pelo poder central brasileiro. Inscrito na melhor tradição glauberiana, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles recorrem à alegoria distópica para falar sobre a sociedade brasileira na atualidade, nesta conturbada fase de transição de Lula para Bolsonaro, um Brasil que parece viver ainda em aparente estado de transe coletivo. A morte da matriarca espoleta uma série de memórias e fantasmas do passado que ameaçam a sobrevivência da comunidade. O filme é povoado por uma série de personagens simbólicas, como a médica Domingas (em mais uma surpreendente interpretação de Sónia Braga), o prefeito sem escrúpulos Tony Júnior ou o DJ Urso (uma espécie de sucedâneo moderno do Cego Júlio de Deus e o “Diabo na Terra do Sol”), que ajudam a compreender a complexidade da sociedade brasileira no momento particular em que vive, acentuada pela mistura de géneros cinematográficos distintos – como o western, a alegoria, a ficção científica, o gore do terror. A música final do filme, um requiem celebrizado por Geraldo Vandré, parece propor uma redenção possível: “Vim aqui só pra dizer/ Ninguém há de me calar/ Se alguém tem que morrer/Que seja pra melhorar/Tanta vida pra viver”. O filme termina assim num momento coletivo em que o bem comum é mais importante que o bem individual, e que só pela união de vontades se poderão ultrapassar as adversidades e derrotar o sistema dos que querem redefinir as regras do mundo apenas em benefício próprio. (PC)