Publicado —
Um homem sem memória é um homem sem identidade. Um homem sem memória não é um Homem: não passa de um animal perdido na tenebrosa e assombrosa escuridão do esquecimento e da indefinição da identidade. Altas Cidades de Ossadas (2017), de João Salaviza, propõe uma exploração visualmente sombria de um homem que, sobre a luz das tentativas de reformatação social e cultural da sua comunidade, se mantém ligado à raiz da sua identidade cultural, ao território onde sente que pertence.
Karlon, personagem principal desta ficção, mas também personagem principal do mundo do rap crioulo em Portugal, está despido de elementos superficiais, sem roupa no tronco, mas, acima de tudo, sem as camadas mais superficiais da memória e da identidade, num estado quase primitivo de um homem que existe (resistindo) através da ligação às profundezas culturais que o definem. A sua memória mais recente está apagada, o contacto com a comunidade a que pertence é esporádica, mas a coletividade que retrata e representa, em si, é de uma força abismal. Um homem aparentemente sem memória individual, que poderia ser reduzido a um animal perdido na escuridão, mas que resplandece, numa absoluta plenitude, a identidade e memória coletiva da cultura em que se integra. A sua força de expressão assenta nas palavras, nos versos, na garra e persistência de ligação ao território que o viu nascer e crescer enquanto pessoa.
A escuridão do meio que rodeia Karlon marca, em termos visuais, este registo de Salaviza, num jogo constante de sombras que nos remete para um estado do inconsciente, de um lugar remoto da memória, que é apagado - ou, talvez, necessariamente desligado - da realidade diária de qualquer indivíduo, de qualquer comunidade, de qualquer cultura, ainda que sempre presente. Somos transportados para uma espécie de savana de elementos naturais, onde o contacto com a realidade mais superficial nos surge somente através de pequenos relances de luz, que incidem sobre amigos e familiares de Karlon, que nos surgem enquanto aparições que instigam a interrupção do estado de alienação - tão terrena, tão natural - da personagem. Somos transportados para o estado mais interior deste indivíduo, que nos transmite a força de uma identidade que não pode - nem deve - ser apagada.
Esta é um registo visual de resistência, uma reflexão performática sobre a tentativa constante de reintegração - forçada -, de realojamento apressado e despersonalizado de comunidades que não encaixam no suposto padrão civilizacional: a colocação de uma cultura num local sem identidade, ao qual não pertencem nem querem pertencer. Uma resistência que se assemelha a uma loucura quase obsessiva, sobre a perspetiva de uma melhoria da condição de vida. Mas não será esta relocalização, esta despersonalização territorial, esta reformatação, esta perda da raiz, da identidade, da memória, a derradeira (e aterradora) loucura?
Outras Notícias
Curtas Vila do Conde
Festival
Contactos
Curtas Vila do Conde
Festival Internacional de Cinema
Praça José Régio, 110
4480-718 Vila do Conde
Portugal
T +351 25 2646516 / 252 643386 (chamada para a rede fixa nacional)
E-mail: info@curtas.pt
© 2024 Curtas Metragens, CRL
Subscrever Newsletter
Back